Cena: A Fronteira Ardente
Personagens:
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Netuno: um ser etéreo, envolto em névoas azuladas, fala com suavidade e mistério, como quem seduz para o abismo.
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Saturno: figura austera, com vestes pesadas, uma couraça que reluz discretamente sob a luz tênue; sua voz é firme, grave, marcada pela autoridade do tempo.
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Áries (presença implícita): o fogo invisível que os cerca, pulsante, como se o chão ardente ameaçasse romper-se a cada fala.
Cenário:
Um desfiladeiro estreito, rochas cortantes sob uma névoa que ora se adensa, ora se dissipa. Ao fundo, um céu avermelhado, crepitante. O chão vibra com a tensão do impulso que não encontra passagem.
[Luz tênue. Netuno paira, desenhando com os dedos arabescos invisíveis no ar. Saturno, imóvel, observa-o de braços cruzados.]
NETUNO (com um meio sorriso melancólico):
Aqui estamos… no limiar do fogo.
Áries arde, clama… mas nós… nós pairamos, não avançamos.
(Ele fecha os olhos e inspira.)
Sinto o sopro da partida, mas… como névoa, tudo se desfaz.
SATURNO (com voz densa, cortante):
Porque não basta querer.
O desejo… esse cavalo indomado…
Aqui, neste signo impaciente, ele precisa aprender o freio.
(Ele bate com força a base de seu cajado na rocha.)
Estrutura, Netuno. Ossatura. Sem ela… o salto é queda.
NETUNO (se aproxima de Saturno, contornando-o com leveza):
E se a queda for também caminho?
E se o afogamento for rito, e não erro?
Áries quer a chama, mas eu… ofereço a bruma.
Não vê? A tristeza que se ergue entre nós…
não é fracasso, é travessia.
SATURNO (encarando-o nos olhos, inquebrantável):
Travessia…
Sim. Mas só atravessa quem suporta o limite.
Quem aceita o peso da armadura, mesmo desejando a nudez.
(Ele estende a mão e toca levemente o peito de Netuno.)
E você… desfaz tudo o que toco.
NETUNO (com um suspiro profundo, como se carregasse o cansaço de milênios):
Eu dissolvo… para que vejas além.
Sem mim, Áries seria só violência.
Sem ti, seria só desejo frustrado.
(Ele estende o braço, como quem tenta alcançar algo além da cena.)
Mas juntos…
Somos a tristeza ardente, a fronteira do ser.
SATURNO (concede um breve, quase imperceptível aceno):
A fronteira… onde se aprende o tempo.
Onde Áries — a criança — descobre a perda, o atraso, a frustração.
E, quem sabe…
(Ele olha para o horizonte encarnado.)
Descobre também que a coragem não é avançar sem medo…
mas avançar apesar dele.
NETUNO (sorrindo com uma doçura amarga):
E eu estarei lá… como o suspiro que antecede o salto.
Como o pranto que purifica o guerreiro.
(Ele toca a mão de Saturno suavemente.)
Nós somos o rito, Saturno…
O lamento que o torna herói.
SATURNO (segura a mão de Netuno com força contida):
E o herói… que se ergue… mesmo com os olhos marejados.
Mesmo quando tudo em si deseja recuar.
[Os dois permanecem assim, imóveis, de mãos dadas, enquanto a névoa se adensa e o fogo do horizonte estala. Não há vitória nem derrota, apenas a tensão eterna entre o impulso e o limite.]
[Luz se apaga lentamente.]
[A névoa se afasta um pouco. Netuno e Saturno soltam as mãos, mas permanecem lado a lado, olhando o horizonte vermelho e vibrante. Silêncio. Então, Netuno dá um passo à frente.]
Monólogo de Netuno
(voz envolta em doçura e tristeza, olhando para além da cena, como quem fala diretamente aos humanos)
NETUNO:
Humanos…
Sentirão em seus corações esta inquietação que deixamos:
o desejo de partir… e a névoa que confunde o caminho.
Muitos de vocês chorarão sem saber por quê;
desistirão antes mesmo de tentar…
ou seguirão, embriagados, atrás de miragens que nunca se deixam tocar.
Eu sou essa vertigem.
Sou o ideal que dissolve a vontade.
Mas também sou a compaixão que consola a falha.
A cada vez que pensarem:
“Não posso… Não sei… Não sou suficiente…”
Lembrem-se:
não é fraqueza… é só a alma se afogando em águas que ela ainda não aprendeu a navegar.
Meu conselho?
Sonhem…
Mesmo sabendo que o sonho, muitas vezes, não se cumpre.
Permitam-se chorar.
Permitam-se perder-se.
Pois é no extravio… que às vezes se encontra o verdadeiro norte.
(Ele fecha os olhos, inspirando profundamente a bruma, e recua para as sombras.)
[Saturno permanece imóvel, como uma rocha. O fogo do horizonte lança reflexos em sua couraça. Então, ele ergue a cabeça e fala, com a voz grave e pausada, como quem dita um decreto antigo.]
Monólogo de Saturno
(voz firme, cortante, como o tempo que não se detém)
SATURNO:
Humanos…
Sentirão em seus ossos a dureza que trago:
o peso dos limites, o muro que se interpõe entre o querer… e o poder.
Dirão que sou obstáculo…
que sou o frio…
que sou o fim.
Mas saibam:
eu sou a escada que vos permite subir.
Sem mim, o fogo de Áries os consumiria.
Sem mim, não haveria forma…
nem permanência.
Quando falharem…
quando tropeçarem…
quando o tempo parecer vos negar tudo o que desejam…
Lembrem-se:
é apenas a vida, ensinando-lhes a paciência que os tornará fortes.
Meu conselho?
Persistam.
Mesmo quando tudo parecer perdido,
mesmo quando Netuno vos chamar de volta às águas do esquecimento…
Firmem o pé.
Aguardem o tempo certo.
E avancem…
não com fúria… mas com sabedoria.
(Ele pousa a mão no peito, como quem sela um voto antigo, e lentamente caminha para a escuridão oposta.)
[O fogo e a névoa se fundem. O desfiladeiro agora vazio, mas vibrante, como se os ecos desses dois deuses eternamente marcassem o coração dos que ousam nascer sob essa conjunção.]
[Luz se apaga.]
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